quarta-feira, 23 de julho de 2008

foto: Hans Neleman
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O pensamento a pegou de susto. É incrível como ainda aos 38 anos ela pode se surpreender com essa capacidade de pensar o inevitavelmente insuportável. Sacudiu a cabeça como se pudesse mudar de mote a força. Nada... Insistiu. Levantou da mesa, a muito tinha terminado o jantar e passava o garfo no prato como se quisesse escrever uma palavra que nunca ouvira. Foi até o espelho mais próximo. Não era grande, mas podia observar todo seu rosto até parte do colo. Lembrou de quantas espinhas espremeu na adolescência e viu com desgosto as linhas que marcavam seu pescoço. A velhice. Queira ou não ela chega. Não é só pele ou cabelo branco. É o espírito também. Muitas coisas que fez no passado não faria nem por decreto hoje. Mesmo sabendo que tudo terminaria bem no final. Ou mesmo que não houvesse um final assim tão importante pra se preocupar. Encarou o espelho. Seus olhos pareciam murchos. Uma sensação enorme de vazio passeou pelo seu ventre. Não procriei, pensou. Deus me deu seios, útero, até pretendentes ele mandou. Bons pretendentes, vale ressaltar. Mas ela negou. Negou a mão, negou o coração, negou de tudo um pouco. Negou a quem veio a quem partiu e a quem ficou. Abriu o armário do banheiro, entre remédios e produtos de higiene bucal encontrou um batom vermelho. Um vermelho tão vulgar que por alguns longos instantes duvidou que fosse seu. Tentou. Sentiu um cheiro enjoado de morango ou tutti frutti. Desistiu. Tirou a velha camisola e se derramou na cama. Como se entregue a morte. Sem choro. Sem sono. Sem cansaço. Sem nada que pudesse dar sentido. E como se tudo estivesse limpo. Como se dormindo pudesse voltar tão longe onde nunca tenha ido.



Um comentário:

Unknown disse...

Nossa! Parece uma voz feminina saída do livro "Memórias de minhas putas tristes"... muito bom!