quinta-feira, 10 de julho de 2008

Abro a porta de ferro de bem uns quinze quilos. Ela desliza suave feito meus dedos entre os cabelos de moça. Bate o teto feito o pai da moça a chamando para entrar. Ainda demoro a acordar e perceber-me como funcionário de estabelecimento comercial. Só depois das cadeiras depositadas no chão, as mesas limpas e o som ligado é que me sinto em um dia de trabalho.

Parece combinado com o destino. Sempre quando estou varrendo o piso do bar o primeiro cliente chega. Hoje foi o Ernesto. Menino bom, fera de curso superior, estudioso, ajuda a mãe com o salário do estágio no banco e dá bom dia para as pessoas na rua. Nunca deixa de falar obrigado, desculpe e por gentileza antes de qualquer frase. Sentou-se empolgado na mesa do canto, depositou a meia tonelada de Xerox e livros em cima da mesa, pediu uma cerveja, pôs a caneta em punho e da bolsa que sempre carrega a tiracolo arrancou um caderno (ou era agenda?) para passar o resto do tempo brincando com palavras. É engraçado. Todo mundo que aprende a contar uma piada, fazer uma redação ou uma lista de compras acha que pode ser escritor. Esse tipo de pretensão faz surgir todo dia um novo gênio.

Ernesto passou a escrever em pontos para facilitar o raciocínio. Para não perder o foco primeiro registrou o tema, depois o ponto um, o dois, lembrou de colocar uma frase entre os dois, passou a criar um terceiro ponto que culminava (a partir do sétimo ponto) numa coisa rara na sua obra: o final. Agora bastavam mais algumas palavras de efeito para unir tudo em algo digno de nota alheia. Usando um passe de mágica desembainhou o laptop e transcreveu o que estava no papel, além de alguns dados complementares surgidos durante o processo.

Lá se foi Ernesto escrever com novas pretensões. A maior era ser lido pelo maior número de pessoas alfabetizadas, no idioma que foi alfabetizado. Não era pela fama, muito menos pelo ganho de imortalidade nas palavras. O garoto de barba rala queria mudar o mundo, se possível todo, ainda nesta encarnação.

Varri por perto para admirar aquele esforço. Quando parava, ascendia um cigarro ou tomava um gole do copo que criava uma beta. Parava quando estava em alguma encruzilha. Naquele instante que sentia que ainda não havia falado tudo o que pensou. Então vinha a bebida e os tragos nos cigarros para clarear as idéias. Parecia um menino quando conseguia fechar o raciocínio e corria para escrevê-lo antes de esquecer a idéia. Pediu mais uma cerveja ainda no caminho do banheiro. Assim, pude ler com mais calma aquela coisa doida para ser a novidade do mundo pop contemporâneo. Eu gostei.

O pivete voltou de passinho empolgado ainda fechando o zíper. Sentou para finalizar tudo com maestria. Passou mais uma hora e meia recortando e colando, refazendo, lendo baixinho, ouvindo o som das palavras para matutar como elas soavam na cabeça dos outros. Salvou tudo no pen drive e correu para lan house mais próxima. A essa altura o bar já estava ocupado pelos outros seres lugares-comuns que garantem o meu dinheiro das contas de fim do mês.

Voltou com o peso dos vários impressos recém-saído da impressora. Passou a distribuí-los no bar, subiu na escada e daquela tribuna pôs-se a proclamar seu texto feito divisor de águas do mar vermelho. Admito ter prestado atenção naquele pobre apenas entre um pedido e outro. Pelo pouco que assisti era teatral. Porém, digno de palmas entusiasmadas. Uma escolha de palavras contemporâneas para falar de um tempo novo. Ideologias nossas e não a dos nossos pais, derrotados pelo sistema de forma sutil.

Quando acabou não houve aplauso nem grito de "avante companheiro de causa!". Ele esperou inútil e desesperadamente por aproximadamente dez minutos até finalmente se sentar derrotado nos degraus. Algumas cópias do manifesto jogadas aos seus pés davam-lhe o tom funesto. Passado algum tempo e um pouco menos desgostoso da vida recuperou as forças para levantar em direção a sua mesa. Observava seu trabalho se tronando papel para anotar telefone, escrever poesia, música e dobradura. Finalizou a noite frustrante com uma grade bem tomada ao lado dos outros companheiros feitos naquela noite.

Sossegue garoto. Você não vai ser o primeiro, nem o ultimo, a descobrir que a revolução já passou.

3 comentários:

Unknown disse...

adorei! muito bom! a oralidade é fantástica! consigo ouvir tua voz lendo isso c teu sotaque de sjcg e tudo mais! parabéns!

Fisioterapia em Coloproctologia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fisioterapia em Coloproctologia disse...

Gostei! De fato, quem te conhece te identifica na crônica, concordo com a Simonne.

Divulguem o "Blodega"!!!



SARAH M.