terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O sabor das azeitonas

Nove anos. Quase duas mãos inteiras de dedos pra cima. Quando cheguei aqui no bairro eu só levantava uma mão quando me perguntavam quantos anos eu tinha. Nem acredito que cheguei até aqui. Até parece que foi ontem que eu era da alfabetização e meu pai lia para mim tudo que eu não entendia no mundo. Dos letreiros de ônibus aos livros. Não conhecia ninguém na rua. Não sabia brincar de nenhuma brincadeira que os meninos brincavam. No futebol era um dos últimos a ser escolhido. Ninguém me falava um segredo, por menor que fosse. Mas hoje estou aqui entre os primeiros a ser escolhido e sei da vida de todos os meus amigos.
Inclusive os meninos mais velhos que apareciam de tempos em tempos com aquela sacola cheia de azeitona preta. As mais gostosas que eu já havia comido. Eu perguntava onde eles achavam tanta azeitona assim. Era segredo, mas eu insisti tanto, emprestei tanto meus brinquedos, convidei tanto para irem a minha casa que certo dia o Tobias me falou aonde eles iam toda tarde depois da escola. Pedia para ir junto, mas eu era muito novo. Minha mãe não ia deixar, e a mãe de algum deles deixava? Se soubessem, duvido que deixassem. Custou, custou, custou até eu consegui ir com eles.
Certo dia o Marquinhos esqueceu a sacola e todo mundo ficou com preguiça de ir pegar em casa. Eu morava mais perto. Pediram para que eu pegasse. Falei que só ia se eu fosse junto. Junto pra onde, menino? Queriam desconversar. Eu disse que sabia do lugar secreto e que só pegava a sacola se eu fosse também. Ta, pega. Foi o que Tobias disse pros outros três. Os outros não acharam boa idéia. E se eu me acidentasse? Fizesse alguma merda como chorar, falar para a mãe de algum deles ou coisa do tipo? Ele falou para todo mundo sossegar, que eu já me garantia. Ele tomava conta de mim, como se eu precisasse de babá aos nove anos.
Tobias já tinha onze, já era adolescente. Eu o achava meu melhor amigo. Foi comigo pra minha casa tomar um copo d’água e pegar a sacola. Os outros seguiram na frente. Coloquei a sacola no bolso da bermuda e fomos andando. Nem sei quanto tempo andei. Acho que uns trinta minutos. Cada vez tinha menos casa e mais mata. Até que a gente chegou no muro do Golfe Clube. Era maior que eu e Murilo. Devia ter quase dois metros. Tentei, mas não tive força para levar o corpo pra cima. Pedi um calce. Ele me pediu as sacolas. Disse que só dava se ele me desse um calce. Ele soltou um sorriso, mandou eu me fuder, subiu em menos de cinco segundos, e pulou pra dentro do terreno do Golfe Clube. Aquilo me deixou com tanta raiva que eu acabei pulando no muro e subi quase morrendo.
Tobias estava começando a andar por um matagal e eu chamei o nome dele. Ele olhou surpreso. Vai ficar aí em cima ou vai entrar? Pulei e já fui andando no passo dele. Mais cinco minutos por uma trilhazinha escondida no mato. Cheiro de bosta, de lama, e de capim molhado. Um monte de mosquito passando e entrando na minha boca e no olho, que eu cuspia tudo para fora. O sol deixou a minha camisa grudada nas minhas costas. O suor também escorria pela minha testa e acabava pingando pelo meu nariz. Andamos até encontrar os outros escondidos por detrás de um arbusto. Nessa hora Tobias colocou a mão no meu peito e diminuiu o passo, andou agachado e eu fazia tudo que ele fazia. O vigia ainda não tinha largado. Era só esperar mais um pouco eu ia finalmente conhecer o lugar secreto.
Ficamos falando baixinho. De jogo, de desenho, das meninas, da mãe um do outro de como era a escola e tudo mais. Até Marcelinho dar o veredicto positivo. As portas do paraíso estavam desprotegidas e nós poderíamos invadi-lo. Eles andaram por mais uns cinco minutos e acabamos saindo no campo de golfe.
Chamar aquilo de campo de golfe seria pecado. Era feito o céu de tão bonito. Com aquela grama verdinha e bem aparada, as árvores compridas fazendo bosques aqui e acolá, os morrinhos onde a cor da grama ficava diferente e eu sabia que era onde estavam os buracos onde a bolinha devia ir. Não tinha um muro, uma parede, um prédio, um adulto, uma menina, nada que não fossemos nós e um monte de aventuras miraculosas vindas da cabeça de meninos suburbanos.
E a gente correu, gritava uhrrú pro vento, dava cambalhota, estrela, bunda canastra e o escambau. Até que chegamos aos pés de azeitonas pretas. Carregados de mal manterem-se em pé. Subíamos em todos feito macacos. Árvores feitas para a altura de meninos arteiros como nós. Que não ligavam de pular de um galho para outro e nem tinham vertigem quando olhavam para o chão.
Naquele instante descobri o motivo daquelas azeitonas serem mais gostosas do que as que meus pais compravam na feira. Eu tinha deixado de ser o menino da minha mãe naquele dia. No passar daqueles dias acabei aprendendo a ir sozinho pro paraíso. Se bem que era muito melhor ir com meus amigos.
Agora eu queria mais, e tudo que passava na minha cabeça era prever o futuro e saber quantos dedos teria de levantar até finalmente dar um beijo desses que só via na novela.