sexta-feira, 17 de abril de 2009

Penelope e Ulisses

Doutor, eu não consigo doutor. Aquela mulher ficou na minha cabeça e não sai. Quero comer, mas só como o que comíamos quando estávamos juntos. Não mudei um item da feira que fazia na época.
Minha casa virou um templo de adoração daquela mulher. Hoje eu vou ao banheiro e vejo a pasta de dente e não tenho coragem de apertá-la, pois a última pessoa que apertou foi Gina. Apertou o tubo da pasta pelo meio, coisa dela mesmo. Odeio quando qualquer um faz isso com a pasta, mas com ela eu não reclamei. Nunca tive coragem de pedir para que ela apertasse no final. Aquele Kolynos em cima da minha pia ficou tão bonito... Sabe quando se está perante uma deusa? Tudo tocava virava bento, mais caro que ouro. Decidi não cometer o pecado de mexer naquele tubo cuja ultima pessoa que o tocou foi ela. De tanto admirar aquilo acabei não vendo necessidade de comprar uma pasta ou escova nova. Por conta desse desatino meus dentes já não são mais os mesmos. A minha boca só tem uns cinco dentes que ainda não foram arrancados. Isso aqui é uma prótese.
E a coisa piora a medida que o tempo segue. Ninguém usa esse modelo de calça e camisa com gola desde a época que eu estava com ela. E o problema doutor, é que Gina amava homem vestido assim. Quero usar roupas de outros modelos, mas, mas... Cacete, eu não consigo. Essa roupa foi comprada na Mesbla. Quase morri do coração quando aquela loja faliu. Foi lá que ela escolheu todo o meu guarda-roupa. Da cueca de oncinha a camisa pólo listrada em diagonal, passando pela calça brim e o sapato Clark de cromo alemão. Ela me vestia feito um boneco Bob da Barbie. Gina saía me levando de arara em arara com um sorriso enorme, escolhendo o que ficava bonito em nós dois. Eu pagava sem dizer um ai. Sabia que ficava bonito quando ela dizia que eu estava bonito. Nunca tinha me achado atraente para mulher nenhuma antes. Confesso que era uma situação ridícula para um homem feito, mas se dessa forma eu poderia estar na vida dela nem me importava. Amei ser o brinquedo dela ou o que ela queria que eu fosse. Agora perco uma nota preta pedindo roupas por encomenda das fabricas que produziam aqueles modelos. De uns dias para cá surgiu o medo que ela não queira mais ficar comigo já que não sei se estou vestindo o que ela gosta atualmente. Nem sei se devo me preocupar com isso de verdade. Pode ser que ela ainda goste, não é?
Não compro um eletrodoméstico novo desde que ela saiu de casa. Mesmo com as peças saindo de linha, teimo em deixá-los em pleno funcionamento. Por isso quando a coisa apertava acabei descobrindo o restaurador que vivia dentro e mim. Então eu lixo, remendo, repinto e troco o que posso de tudo que estava perdendo o brilho ou ficando com jeito de velho. Não conte para ninguém doutor, confio na sua ética profissional. A coisa chegou ao ponto que já possuo um liquidificador com uma liga segurando o motor e a borracha da porta da geladeira só está fixa no lugar por causa da quantidade cavalar de super bonder que pus lá. Algumas vezes a coisa não tem jeito, como o dia em que chorei sem saber o que fazer quando vi que o sofá da sala deu cupim. Quando isso acontece dou espaço para o medo que ela não volte. Chego a pensar que ela me abandonou mesmo. Matei todos os cupins e arrumei a coisa toda como pude. Sigo em frente com minha vida.
Veja essa foto da época. Batemos na festa do morro. Mudei pouco não acha? Mesmo assim rezo todo dia para Nossa Senhora da Conceição para que Gina não note o que o tempo fez comigo enquanto ela estava fora. Que agora eu tenho cabelo tingido, rugas e esses pés de galinha. Para combater o corpo flácido malho todo dia, comprei cremes e o que mais inventam para essas donas ficarem novas para os maridos só para ela não se decepcionar quando me ver.
O que eu faço enquanto Gina não volta? Antigamente ficava vendo televisão esperando que toda vez que o telefone tocasse fosse ela me dizendo onde estava. Hoje em dia fiz progressos: tomo conta do meu xaxim, do cachorro (quinto cachorro da mesma raça, tamanho e cor) e ainda mantenho meu trabalho na contabilidade.
Como é no trabalho? Não é complicado. Vim aqui para provar ao senhor que ainda sei separar as coisas. Ninguém entende como eu trabalho como um louco naquela firma, mas não aceito uma promoção sequer. Mas no dia que ouvi falar que estavam querendo remover a nossa empresa para outro prédio. Melhor, mais moderno. Não aceitei. Juntei um monte de gente que já estava com saco cheio daquele trabalho e fiz um piquete. Quando soube da confusão o seu Artur (que é o presidente da firma) tratou logo de dar um despacho em tudo e meter a caneta pra cima de quem estivesse achando ruim. Mas quando se é o contador, se descobre e se esconde um monte de esqueletos dentro dos armários. Por isso o presidente veio falar comigo quando soube que era eu o chefe da greve. Além disso, ele é muito fã daquele cara, o Rockfeller, que falava “Para ficar rico você precisa de um poço de petróleo e um bom contador”. Ele tinha um respeito danado por mim. Sentei-me sozinho na frente do homem que montou aquela firma tão grande graças a minha ajuda. Não íamos falar de números, balancetes ou coisas do tipo. Ele queria saber por que eu não aceitava mudar de sala, diminuir a minha carga horária ou tirar férias. Foi a conversa mais intima que tivemos em todos esses anos. Pela segurança que ele me passou tive coragem de confessar os motivos daquela revolta. Falei: era mais fácil para Gina me achar se eu ainda estivesse no mesmo lugar. Ele segurou o queixo com a mão e revirou os olhos como se quisesse falar alguma coisa. Demorou algum tempo e perguntou se Gina era a tal menina que conheci na saída do trabalho, passou uma semana comigo e me abandonou ou era uma lenda do escritório. Eu corrigi dizendo que ela teve que sair para visitar um parente que estava passando mal naquela noite, mas não voltou ainda porque aconteceu alguma coisa que só Deus sabe, mas ela não foi embora. Acho que a parenta dela piorou e ela está lá até hoje esperando a coitada melhorar para voltar para mim. Gina sabia cuidar de uma pessoa como ninguém sabe cuidar. Não quero dar trabalho para Gina e por isso eu aguardo ela ter tempo para voltar para mim.
E não me olhe com essa cara. Eu lhe garanto, tanto quanto dois e dois são quatro que Gina não mentiu para mim um dia sequer. Ela era bonita demais para mentir para mim. Algumas vezes ela falava umas coisas que pareciam não ter sentido. Mas eu sabia que é normal falar coisas estranhas quando você ama muito uma pessoa e fica na presença dela. Por mais que digam o contrário eu sei o quanto que aquela mulher me ama, doutor.
Nunca vou ter alguém igual a ela. E por isso eu gostaria que o senhor me fizesse a gentileza de me passar esse atestado que meu patrão pediu, garantindo que posso retornar ao trabalho. O senhor não vai querer ter problemas. Já pensou se a Receita Federal descobre aqueles recibos de atendimento médico que o senhor libera para os seus pacientes descontarem o Imposto de Renda deles? Ter um contador discreto e um funcionário leal é uma raridade esses dias. Não concorda? O Prozac fica por sua conta.

4 comentários:

Mirella disse...

foi tu que escreveu ricardo?

Unknown disse...

going round

Camila disse...

HUAHUAHU, muito bom !

Myrian Isis disse...

não sei o que é melhor, ler tudo aqui ou saber um trecho dito por tu pessoalmente!

mais uma vez: impressionante!