segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O dia que tapacurá estourou

Não existiu nada igual na historia da cidade. Nem em filme, conversa de mesa de bar, lembrança perdida da infância, anuncio publicitário ou qualquer escambal que fosse. Era novo. Um murro de Deus aplicado bem no meio da cara para lembrar que não éramos nada. Uma colônia de bactérias sobrevivente de um espirro divino. Nada mais faz sentido depois daquele dia.
Um dia de Recife com chuva. É quando os guarda-chuvas saem de casa para flertar entre si, com seus donos de caras remelentas e inchadas de sono segurando os cabos para não se molhar. Eles Inteiros, coloridos, quebrados, compridos, curtos e ocupam todas as calçadas que ainda não encharcaram. Cruzando o espaço entre as poças, esbarrando um no outro nessa dança desconexa. Dizendo “Oi fulana” entre os pingos frios.
Quem podia usava casaco, suéter ou qualquer buginganga de frio que todo mundo vê na televisão e fica morrendo de vontade de usar igual. Só que o Recife e seus vinte e nove célsius, em média, não deixam. Então dia de chuva vira uma chance de mostrar que você não é um pé-rapado. “Os Mendigos nos países frios tem mais estilo do que os nossos que mal usam um calção sem cueca, que dirá uma camisa”, diriam certos recifences. E nesse dia de chuva, papelão era disputado à tapa. #Quandoequetapacuravaiestourar já era vista no top trends do twiter.
Logo às oito da manhã, as ruas já se encontravam intransitáveis, berrava um Geraldo Freire ao vivo pela Super Manhã. Chuva era a pauta do dia. Na televisão o assunto era a mesma cantilena de todos os anos. Chuva. Agamenon? Parada. Muita chuva. Domingos Ferreira, mesma coisa. Chuva. Caxanga? Já nem se tinha mais esperança de chegar na hora. Chuva e chuva. Jardim Brasil e Peixinhos perderam a visibilidade do asfalto uma hora depois da chuva. Cadê o governo que não vê a situação da gente? Chovia torrencialmente em toda a região metropolitana do Recife.
De tarde a coisa complica mais. Escolas já liberavam os alunos desde as dez da manhã. Há todo momento o um nove zero estava a mil. Ligações de barreiras caindo. “Tapacurá vai estourar?” é o que dizem, mas ninguém acredita nesse boato. As ruas estão intransitáveis. Não há espaço para mais carros. As pessoas sabem disso e não ligam. Insistem em chegar as suas casas. Qualquer lugar menos aquele inferno molhado. O Governador anuncia que não é motivo de pânico, mas que os cidadãos da região metropolitana do Recife, caso possam, dirijam-se a locais mais altos.
Ouviu-se então um barulho distinto dos outros em meio à chuva. Um som surdo crescendo, tomando intensidade, pegando forma e deixando as pessoas dentro dos carros e nas ruas paralisadas. Elas olhavam entre si sem entender o que era. Aquilo vinha vindo, vindo, mais alto que o som das buzinas, da chuva batendo a mil nos telhados, dos motores, dos queixumes dentro do ônibus e de toda tragédia humana que vive no Recife e luta para sobreviver. Então veio a onda que estava atrasada há mais de vinte anos.
Pressão demais e uma rachadura que ninguém viu na parte interna da represa, tanta água de uma vez e a incapacidade de imaginar um absurdo selaram o destino de uma geração. Pelo menos foi o que disseram. As dezesseis e trinta uma onda gigantesca saiu de Camaragibe em direção ao centro destruindo tudo que podia no caminho. Matou os amantes nos motéis, abençoou os anseios dos pretensos suicidas do CFCH e dos que se ajoelhavam em sua frente aceitando a iminência da morte. Estuprou a Caxangá com sua fúria e silenciou todos os sonhos de quem ainda acreditava em Deus. As pessoas corriam em vão. Eram arremessadas umas sobre as outras, colidiam com carros e paredes. Quebravam os ossos e as juntas enquanto sufocavam com o lixo depositado nas vielas. Árvores centenárias que viram a cidade crescer foram arrancadas do solo, tombando sobre os fios de alta tensão causando mais dor e morte instantânea. Chegou ao centro em pouco mais de 10 minutos. Se tudo ocorreu em menos de meia hora, foi muito. Quase não deu tempo de dizer que era pra fugir, que amava, era pra se cuidar, que não ia dar mais para fazer aquela viagem ou ver quem ganhará “Dança dos famosos” desse ano. Só sobrou desolação.
Ninguém sabe onde está o governo. Está tudo destruído. As pessoas que moram nos morros sobreviveram até onde a doença e a fome deixaram. Helicópteros tiraram quem pode pagar. Alguns anos depois, disseram que aquela história de cheia era um boato. Vai saber...

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